A escola. A flor. A flor. A escola...
Tudo ia muito bem quando o Godofredo entrou na minha aula. Pediu licença e foi falar com D. Cecília Paim. Só sei que ele apontou a flor no copo. Depois saiu. Ela olhou para mim com tristeza.
Quando terminou a aula, me chamou.
- Quero falar uma coisa com você, Zezé. Espere um pouco.
Ficou arrumando a bolsa que não acabava mais. Se via que não estava com vontade nenhuma de me falar e procurava a coragem entre as coisas. Afinal se decidiu.
- Godofredo me contou uma coisa muito feia de você, Zezé. É verdade?
Balancei a cabeça afirmativamente.
- Da flor? É, sim, senhora.
Como é que você faz?
- Levanto mais cedo e passo no jardim da casa do Serginho. Quando o portão está só encostado, eu entro depressa e roubo uma flor. Mas lá tem tanta que nem faz falta.
- Sim. Mas isso não é direito. Você não deve fazer mais isso. Isso não é um roubo, mas já é um “furtinho”.
- Não é não, D. Cecília. O mundo não é de Deus? Tudo o que tem no mundo não é de Deus? Então as flores são de Deus também...
Ela ficou espantada com a minha lógica.
- Só assim eu podia, professora. Lá em casa não tem jardim. Flor custa dinheiro... E eu não queria que a mesa da senhora ficasse sempre de copo vazio.
Ela engoliu em seco.
- De vez em quando a senhora não me dá dinheiro para comprar um sonho recheado, não dá?...
- Poderia lhe dar todos os dias. Mas você some...
- Eu não podia aceitar todos os dias...
- Por quê?
- Porque tem outros meninos pobres que também não trazem merenda.
Ela tirou o lenço da bolsa e passou disfarçadamente nos olhos.
- A senhora não vê a Corujinha?
- Quem é a Corujinha?
- Aquela pretinha do meu tamanho que a mãe enrola o cabelo dela em coquinhos e amarra com cordão.
- Sei. A Dorotília.
- É, sim, senhora. A Dorotília é mais pobre do que eu. E as outras meninas não gostam de brincar com ela porque é pretinha e pobre demais. Então ela fica no canto sempre. Eu divido o sonho que a senhora me dá, com ela.
Dessa vez ela ficou com o lenço parado no nariz muito tempo.
- A senhora de vez em quando, em vez de dar para mim, podia dar para ela. A mãe dela lava roupa e tem onze filhos. Todos pequenos ainda. Dindinha, minha avó, todo o sábado dá um pouco de feijão e de arroz para ajudar eles. E eu divido o meu sonho porque Mamãe ensinou que a gente deve dividir a pobreza da gente com quem é ainda mais pobre.
As lágrimas estavam descendo.
- Eu não queria fazer a senhora chorar. Eu prometo que não roubo mais flores e vou ser cada vez mais um aluno aplicado.
- Não isso, Zezé. Venha cá.
Pegou as minhas mãos entre as dela.
- Você vai prometer uma coisa, porque você tem um coração maravilhoso, Zezé.
- Eu prometo, mas não quero enganar a senhora. Eu não tenho um coração de maravilhoso. A senhora diz isso porque não me conhece em casa.
- Não tem importância. Pra mim você tem. De agora em diante não quero que você me traga mais flores. Só se você ganhar alguma. Você promete?
- Prometo, sim senhora. E o copo? Vai ficar sempre vazio?
- Nunca esse copo vai ficar vazio. Quando eu olhar para ele vou sempre enxergar a flor mais linda do mundo. E vou pensar: quem me deu essa flor foi o meu melhor aluno. Está bem?
Agora ela ria. Soltou minhas mãos e falou com doçura.
- Agora pode ir, coração de ouro...
José Mauro Vasconcelos, in "O Meu Pé de Laranja Lima"
2 comentários:
Acabei agora de ler e consegui voltar no tempo. Há 13 anos atrás, quando tu eras a professora e eu a aluna. Foi o primeiro livro que me deste com dedicatória e tudo, guardo-o até hoje na minha prateleira dos livros. Obrigada. Saudades!!
Sim, têm razão, enquanto for um facto novo haverá sempre muito por fazer. Mas talvez seja sempre assim, vamo-nos sucedendo uns outros na esperança de apagar uns certos erros mas parece que se vão acumulando. Mas, mesmo que seja algo inevitável, deve-se sempre tentar mudar.
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