domingo, 30 de novembro de 2008

Reencontro

Entrou no café e procurou ansiosamente um rosto familiar. No fundo da sala, na mesa do canto uma jovem mulher lia um livro. Mesmo sem lhe ver o rosto, soube que era ela. A sua menina transformada numa mulher. Hesitou um momento e aproveitou o facto de estar distraída para a observar. Conservava o porte distinto e sereno, o ar contido e determinado. E ali, numa cena de filme, todo o ruído do café desapareceu e o tempo pareceu parar, no instante em que ela levantou os olhos do livro e os seus olhares se cruzaram. Avançou lentamente em direcção à mesa, cumprimentaram-se, o empregado aproximou-se, pediram chá, e ficaram em silêncio. Um silêncio cheio de emoções e palavras que se atropelavam sem sair. Foi assim, em silêncio, que souberam que, apesar de tudo, elas ainda eram as mesmas e reataram uma longa conversa, interrompida durante anos, com a naturalidade de quem se vira na véspera. Sem perguntas nem explicações, apenas com o entusiasmo de quem gosta uma da outra. Quando finalmente olharam em redor, já não restava mais ninguém no café além dos empregados desejosos de se irem embora. Como sempre, o tempo fora demasiado curto. Riram-se do seu próprio alheamento e saíram para o frio cortante de Dezembro. Cá fora, despediram-se relutantemente, mas sem promessas, e cada uma tomou o seu caminho, certa de que, por muito diferentes que fossem os seus caminhos, sempre se haveriam de cruzar. Porque é isso que acontece aos amigos.

sábado, 29 de novembro de 2008

O pátio do liceu

Há anos que não entrava no pátio do Liceu. Na verdade, não sei se terei lá entrado muitas vezes desde que deixei de estudar no Liceu há quase vinte anos. Muita coisa mudou, sobretudo eu, claro, mas também o próprio pátio. Nessa altura, ainda não se tinham lembrado de fechar o pátio e instalar ali o bar, pelo que durante o Inverno era desabrigado e frio, sem nada que o separasse do jardim ou que impedisse a chuva de entrar pela clarabóia por cima do lago (vazio) que se encontrava no centro. Também não existiam todas aquelas tribos diferentes de alunos que agora o povoam, nesse tempo de um lado tínhamos os betos (rapazes e raparigas de ar arrumadinho, pullovers verdes ou vermelhos de decote em bico, botas alentejanas mandadas fazer por medida, mini-saias xadrez e mocassins), do outro os vanguardistas (pessoal que vestia de preto e que, para os padrões da época, tinha um ar mais alternativo e contestário). Eu, a quem faltavam alguns requisitos para ser uma verdadeira beta, especialmente o dinheiro para fazer um certo tipo de vida, passei todos os anos de secundário a tentar parecer-me com as minhas amigas betas e a olhar com um certo espanto e indiferença a tribo dos vanguardistas, que, agora que penso nisso, devia ser mais heterogénea e interessante do que na altura terei tido consciência. Foram precisos muitos anos para me livrar de certo tipo de preconceitos e descobrir que era mais do que uma menina betinha e bem-comportada. Talvez por isso, quando agora entro no liceu, gosto de observar os adolescentes e as suas tribos. São tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão parecidos com o que nós fomos: procurando encontrar o seu lugar no mundo, usando a aparência para se afirmarem, integrarem ou revoltarem contra o mundo, vivendo as mesmas dúvidas existenciais, enfim, crescendo.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Questionário

Uma vez que fui desafiada a responder a este questionário, aqui está. Todas as respostas são títulos de músicas de Sheryl Crow.

1) És homem ou mulher? "Maybe angels"
2) Descreve-te: "Strong Enough"
3) O que as pessoas acham de ti? "The difficult kind"
4) Como descreves o teu último relacionamento? "No one said it would be easy"
5) Descreve o estado actual da tua relação: "We do what we can"
6) Onde querias estar agora? "Home"
7) O que pensas a respeito do amor? "Love is a good thing"
8) Como é a tua vida? "Everyday is a winding road"
9) O que pedirias se pudesses ter só um desejo? "Always on your side"
10) Escreve uma frase sábia: "I shall believe"

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A eloquência do silêncio

Toda a gente parece ter uma opinião sobre o que eu devia fazer. Toda a gente menos o meu pai. A minha mãe fala frequentemente sobre o assunto, pergunta se já tomámos uma decisão, faz até alguma chantagem psicológica. Ao meu pai ainda não ouvi uma palavra. A minha mãe pressiona, choraminga, diz claramente que não quer que nos vamos embora. O meu pai aparenta desinteresse e abandona a sala. E, no entanto, sei bem que esta questão não lhe é indiferente. Sei que age assim porque não quer interferir na minha decisão, e acha que eu sei que estará do meu lado qualquer que seja a decisão que venha a tomar (como, aliás, sempre fez). Ontem, quando o vi brincando com o neto no computador, tive a certeza que será ele a sofrer mais se partirmos. Por minha causa, mas sobretudo pelo meu filho, o neto que ele recebeu de coração aberto e para quem tem uma enorme paciência e tolerância. Ver aquela cumplicidade entre eles exerceu sobre mim mais pressão do que todas as palavras que o meu pai pudesse ter dito para me fazer ficar. E o meu pai nunca diria essas palavras. O seu silêncio é simultaneamente uma forma de respeito pela minha decisão e uma evidência de fragilidade face ao que eu possa decidir.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Creio que todas as decisões importantes que tomei na vida foram tomadas no duche. Por isso, tenho passado longos minutos sob a água corrente. Até agora, tudo o que consegui foi aumentar a conta da água e prejudicar o ambiente. Mas não desisto. Um destes dias emergirei do nevoeiro do banho com a certeza do caminho a seguir.

domingo, 16 de novembro de 2008

Me Kala, You Tarzan



Ontem, eu e o meu filho estivemos a ver o Tarzan. Não me lembro de alguma vez ter visto o Tarzan antes, e definitivamente nunca nesta versão da Disney, por isso até não foi um esforço sentar-me com ele para ver o filme (sim, porque às vezes há desenhos animados que só mesmo por amor aos filhos é que conseguimos suportar). A verdade é que me comovi desde o início com a forma como a gorila Kala encontra o pequeno Tarzan e sente o apelo do instinto maternal, e depois me deixei envolver pelo filme. Não é fácil resistir à magia destas histórias para crianças, principalmente pela universalidade dos sentimentos e dos valores em jogo, mas neste caso era mais do que isso. A Kala e o Tarzan somos nós, eu e o meu filho, e ali, sentados no sofá, lado a lado, ambos o sabíamos. Por isso não foi uma surpresa quando, na cena em que Kala leva Tarzan à casa onde o encontrou, o meu filho se virou para mim e me disse: "Tu és a Kala, mamã". Não pude conter as lágrimas, incerta entre a alegria e a tristeza dele compreender o que somos. No final do filme, o meu filho afirmou chorando que estes filmes não são para meninos tão pequeninos porque são muito tristes. "Nem para adultos", pensei eu, abraçando-o para o consolar e esperando ser consolada. E foi assim que aprendemos um pouco mais sobre nós.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Ainda não sei

Anos a querer ser professora. Anos a não desistir do entusiasmo de ensinar, do sonho de ser diferente e fazer a diferença. Anos a sorrir quando me diziam que ia perder essa força com o tempo e a responder “talvez”, e a dizer para mim própria que isso nunca iria acontecer. Anos a entrar na escola e sentir-me feliz por “estar em casa”. Anos de arrepiar os cabelos, de pensar que não vou aguentar e depois a aguentar porque, apesar de tudo, gosto daquilo. Anos, anos, anos de escola... e agora vou-me embora?

Pergunta: Se me for embora ainda serei professora?
Resposta: Não sei.

Pergunta: Se não for professora, ainda serei eu?
Resposta: Não sei.

Pergunta: Partir é uma forma de me salvar ou apenas de fugir?
Resposta: Não sei.

Pergunta: Que sabes?
Resposta: Ainda não sei.

Um abraço de 'gosto muito de ti'

"A mãe gosta do pai.
O pai gosta da mãe.
O pai e a mãe gostam de mim.
E eu gosto do pai e da mãe.
E agora, mãe, vou dar-te um abraço de 'gosto muito de ti'."


E eu rio-me, enquanto as lágrimas me caem pelo rosto. A vida devia ser assim tão simples. E, por um breve momento, é.

domingo, 9 de novembro de 2008

"It's not true that life is one damn thing after another; it is one damn thing over and over."

Edna St. Vincent Millay

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Heart of Chambers



Beach House, "Heart of Chambers"

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Desabafo

"Se arranjasse outra coisa para fazer, ia-me embora."
"Quem me dera não estar aqui!"
"Estou tão cansada! Sinto-me como se as aulas já tivessem começado há seis meses (e afinal ainda só há dois)."
"Se me saísse o Euromilhões, nunca mais aqui punha os pés."
"Não sei se aguento isto até ao fim do ano."
"Objectivos?! O meu objectivo é manter a sanidade mental no meio de tantos papéis para preencher."
... etc, etc...

É possível que nem todos, confrontados com a hipótese de abandonarem o ensino, fossem de facto embora. No entanto, neste momento seriam mais do que antes. Isto faz pensar. Os professores não são máquinas e ressentem-se da pressão a que estão a ser sujeitos. Tenho de confessar que a estratégia é bem pensada: quebrar psicologicamente os professores e pô-los uns contra os outros, ou seja, dividir para reinar. Maquiavélico, mas potencialmente eficaz. Assim somos mais fáceis de manipular. Independentemente das convicções políticas, das opiniões sobre a qualidade do ensino e sobre a forma de o melhorar, uma coisa é certa: se destruirmos (literal e metaforicamente) os professores, nada poderá ser feito no ensino que o torne realmente melhor.