Reportagem sobre adopção. Fico a ver. Presa por aquela sensação de que estão a falar de mim, de nós. Emociono-me um pouco. Irrito-me um pouco. É que há na forma como os jornalistas abordam o desajuste entre o perfil de criança desejado pelos adoptantes e as crianças em condições de serem adoptadas um tom que me cai mal. Não creio que seja propositado, mas aos meus ouvidos aquilo soa-me como "vocês não são pessoas suficentemente boas para quererem os outros meninos", sendo que "os outros meninos" são crianças com deficiência, doenças graves, de outra raça ou mais velhas. Obviamente compreendo que é necessário encontrar soluções para essas crianças e que a melhor solução seria a adopção. Obviamente também reconheço que essas crianças têm tanto direito a uma família como as outras. Mas a questão não é essa. A questão é que os pais que chegam à adopção pelo caminho que eu cheguei não estão a praticar um acto de caridade, já ultrapassaram o sonho da criança perfeitinha (que, presumo, seja no fundo o sonho de todos os pais) e estão dispostos a fazer um compromisso com a vida, mas é preciso medir o tamanho desse compromisso. À partida, os nossos filhos já passaram por experiências (mais ou menos) traumatizantes. À partida, já sabemos que os nossos filhos nos vão colocar perante situações que os outros pais (os "pais biológicos", expressão que detesto) não terão de enfrentar. Preparamo-nos para lidar com isso e rezamos para sermos capazes. Mas na verdade não sabemos. Não sabemos como vai ser e temos medo. Creio que é legítimo termos medo, porque mesmo quando as coisas correm bem é complicado. Imaginem-se de repente com uma criança de três anos nos braços, que não conhecem e que não vos conhece, a tentar estabelecer uma relação e a educar, equilibrando o afecto e a disciplina, e, simultaneamente, gerindo uma torrente de emoções (que vão do puro pânico à mais extraordinária felicidade). Não é fácil. É um enorme desafio e não é para todos. Cada um tem de saber o que aguenta. E, sinceramente, por muito boas intenções que tenhamos, por muito desejemos aquela criança, há coisas que só descobrimos depois. À medida que os dias passam e nos apaixonamos a sério por aquela criança, e não pela imagem do filho que sonhámos ter. Por isso, não, não somos más pessoas só porque não queremos os "outros meninos". Somos pais à procura de um filho, por caminhos mais difíceis do que a maioria dos pais, e creio que já provamos o suficiente quando não desistimos a meio do caminho.
[Já agora, o caminho vale mesmo a pena. Até chegar ao filho, e sobretudo depois de o encontrar.]
2 comentários:
Mais uma vez, é extraordinário como encontras as palavras para falar destas coisas, das tuas emoções que também são as minhas. Concordo que o caminho vale mesmo a pena, mesmo que não tivesse sido o percurso que nós escolheríamos, mas às vezes é bom termos um pretexto destes para no-lo recordar e para o gritarmos a quem calhe estar a ouvir.
bom post**
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